Desconforto
Enquanto subo aquela ladeira
chamada rua interminável, meus pés atropelam pedregulhos, papéis e chicletes
demasiados que preenchem as ruas da cidade.
E minha felicidade inocente de
criança-quase-adolescente vai tomando o lugar dos chicletes, dos papéis e dos
pedregulhos por uma cidade florida e alegre, onde tudo se encaixa em seu devido
lugar.
Mas esse sonho que se parece
tornar algo concreto, se esvazia pela realidade e cotidiano que eu vivo naquele
momento, o desconforto.
Todos os dias caminhando com os
pensamentos antes dos pés, sempre que passo pela frente da inacabável obra,
vejo homens que se parecem dignos de seu trabalho estirados nas sombras de
grandes árvores enquanto tomam garrafões de dois litros de coca-cola e apreciam
a inadimirável vista de pessoas passando pela estreita calçada.
Digo e repito inadimirável pois
sempre que algo novo e talvez chamativo `aqueles olhos interrompe a vista
horizontal, é forte motivo de desqualificação, objetificação e zombeteira
daquelas pessoas, ou melhor, mulheres.
A frase costumeira que ouço da
boca de outros quando estou perto, normalmente se parece com "mais uma
daquelas cantadas de pedreiro", como se fosse algo que as pessoas se
acostumaram, como se fosse algo sem importância, como se fosse algo normal.
Não consigo imaginar como os
homens que conseguem falar coisas dessas aos outros podem ter uma família, uma
vida feliz, um conforto, mas imagino-os como pessoas carentes, que precisam de
atenção dos outros, os desconhecidos, para preencher a vida deles.
Mas ao mesmo tempo também não
consigo imaginar uma mulher no lugar deles, falando coisas obscenas aos homens
que passam a sua frente. E se fizessem isso, com certeza seriam xingadas e
desqualificadas, coisa que raramente uma mulher faz a um homem.
Depois disso tudo, homens assim se
sentem no direito de dizer que a mulher pertence ao sexo frágil, que não tem
opinião, que não pode trabalhar, que seu lugar é em casa cuidando dos filhos,
que lazer não é coisa delas, que não autorizar-las a usar o que quiser é
questão de proteção, que não podem falar com outros homens se não elas serão
xingadas, que lugar público não é lugar de mulher. E então depois vem falar que
vida de mulher é fácil, e que se recebessem "elogios" assim todos os
dias, teriam ganhado o dia.